quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Sociedade Mundial da Cegueira

Leonardo Boff *

O poeta Affonso Romano de Sant'Ana e o prêmio Nobel de literatura, o português José Saramago, fizeram da cegueira tema para críticas severas à sociedade atual, assentada sobre uma visão reducionista da realidade. Mostraram que há muitos presumidos videntes que são cegos e poucos cegos que são videntes.
Hoje propala-se pomposamente que vivemos sob a sociedade do conhecimento, uma espécie de nova era das luzes. Efetivamente assim é. Conhecemos cada vez mais sobre cada vez menos. O conhecimento especializado colonizou todas as áreas do saber. O saber de um ano é maior que todo saber acumulado dos últimos 40 mil anos. Se por um lado isso traz inegáveis benefícios, por outro, nos faz ignorantes sobre tantas dimensões, colocando-nos escamas sobre os olhos e assim impedindo-nos de ver a totalidade.
O que está em jogo hoje é a totalidade do destino humano e o futuro da biosfera. Objetivamente estamos pavimentando uma estrada que nos poderá conduzir ao abismo. Por que este fato brutal não está sendo visto pela maioria dos especialistas nem dos chefes de Estado nem da grande mídia que pretende projetar os cenários possíveis do futuro? Simplesmente porque, majoritariamente, se encontram enclausurados em seus saberes específicos nos quais são muito competentes mas que, por isso mesmo, se fazem cegos para os gritantes problemas globais.
Quais dos grandes centros de análise mundial dos anos 60 previram a mudança climática dos anos 90? Que analistas econômicos com prêmio Nobel, anteviram a crise econômico-financeira que devastou os países centrais em 2008? Todos eram eminentes especialistas no seu campo limitado, mas idiotizados nas questões fundamentais. Geralmente é assim: só vemos o que entendemos. Como os especialistas entendem apenas a mínima parte que estudam, acabam vendo apenas esta mínima parte, ficando cegos para o todo. Mudar este tipo de saber cartesiano desmontaria hábitos científicos consagrados e toda uma visão de mundo.
É ilusória a independência dos territórios da física, da química, da biologia, da mecânica quântica e de outros. Todos os territórios e seus saberes são interdependentes, uma função do todo. Desta percepção nasceu a ciência do sistema Terra. Dela se derivou a teoria Gaia que não é tema da New Age; mas, resultado de minuciosa observação científica. Ela oferece a base para políticas globais de controle do aquecimento da Terra que, para sobreviver, tende a reduzir a biosfera e até o número dos organismos vivos, não excluídos os seres humanos.
Emblemática foi a COP-15 sobre as mudanças climáticas em Copenhague. Como a maioria na nossa cultura é refém do vezo da atomização dos saberes, o que predominou nos discursos dos chefes de Estado eram interesses parciais: taxas de carbono, níveis de aquecimento, cotas de investimento e outros dados parciais. A questão central era outra: que destino queremos para a totalidade que é a nossa Casa Comum? Que podemos fazer coletivamente para garantir as condições necessárias para Gaia continuar habitável por nós e por outros seres vivos?
Esses são problemas globais que transcendem nosso paradigma de conhecimento especializado. A vida não cabe numa fórmula, nem o cuidado numa equação de cálculo. Para captar esse todo precisa-se de uma leitura sistêmica junto com a razão cordial e compassiva, pois é esta razão que nos move à ação.
Temos que desenvolver urgentemente a capacidade de somar, de interagir, de religar, de repensar, de refazer o que foi desfeito e de inovar. Esse desafio se dirige a todos os especialistas para que se convençam de que a parte sem o todo não é parte. Da articulação de todos estes cacos de saber, redesenharemos o painel global da realidade a ser compreendida, amada e cuidada. Essa totalidade é o conteúdo principal da consciência planetária, esta sim, a era da luz maior que nos liberta da cegueira que nos aflige.

[Autor de A nova era: a consciência planetária, Record (2007)]
* Teólogo, filósofo e escritor

Economia e vida (III): o espírito do capitalismo e a conversão

Jung Mo Sung

No primeiro artigo desta série sobre "economia e vida", eu abordei a dimensão material da vida , no segundo, a dimensão teológica da economia . Completando a primeira parte (sobre as questões de fundo desta relação), eu quero propor neste artigo algumas reflexões sobre a dimensão espiritual da economia.
No passado, não tão distante, quando as pessoas se sentiam "impuras" ou, na linguagem mais contemporânea, deprimidas, iam às igrejas ou outros lugares sagrados para rezar ou participar de algum rito. A ida a um lugar sagrado e a participação em ritos sagrados lhes fazia sentir mais puras, mais fortes e dignas para enfrentar a vida. Hoje em dia as pessoas preferem ir a um Shopping Center fazer compras ou ver vitrines. E o mais interessante é que saem de lá com mais vigor e ânimo para viver. É como se o desejo de viver tivesse sido fortalecido. Não é à toa que a arquitetura dos shoppings tem muitos elementos que nos lembram templos e catedrais.
Esse pequeno exemplo nos mostra que há um tipo de experiência espiritual que acontece na vida cotidiana das pessoas através do mundo da economia. Essas experiências econômico-espiritual é tão marcante nos dias de hoje que, mesmo nas igrejas a questão do consumo tem uma presença muito forte. Isso não se dá somente na já bastante conhecida e criticada teologia da prosperidade - presente no mundo protestante, evangélico e católico - que ensina que a benção de Deus se manifesta através de ou garante a prosperidade econômica. Mas também em outras manifestações como o orgulho por causa de um padre ou pastor da sua igreja vender muitos CDs ou fazer muitos shows. Padres e pastores de sucesso (espiritual-econômico?) que costumam usar roupas e carros de marcas famosas e caras estão se tornando modelos para novos candidatos ao sacerdócio ou pastorado e também para jovens cristãos.
Com isso não estou querendo dizer que freqüentar um shopping ou comprar roupa de moda é viver a espiritualidade do mercado. Isso seria cair em outro extremo. O problema não está em comprar algo bom e bonito em um centro de compras (shopping center), mas em sentir-se mais digno e "puro" por causa disso. A questão espiritual não está no ato de comprar ou na mercadoria que compra, mas no sentido mais profundo que encontra e vive nessa experiência. O que esse tipo de experiência espiritual, que acontece em quase todas as partes do mundo hoje, mostra é que esta não é uma questão meramente individual, de algum erro moral ou espiritual de alguns indivíduos, mas tem raiz em uma transformação profunda que ocorreu no mundo moderno capitalista.
Max Weber sintetizou isso ao dizer que a obtenção de mais e mais dinheiro se tornou o supremo bem que norteia a vida no capitalismo. Antes, as pessoas trabalhavam e lidavam com as questões econômicas em função da satisfação das necessidades de viver (a dimensão material da vida). Agora, ganhar dinheiro passou a ser a finalidade última da vida. Hoje, com a cultura do consumo, consumir e ostentar o consumo passou a ser o sentido último da vida. Por isso, quando se sentem "perdidas", "impuras" ou "menos-gente", as pessoas vão aos shoppings. Elas não têm consciência do que estão fazendo; isto é, não sabem que estão indo às compras ou ver vitrines para realizar o sentido último das suas vidas. Elas são simplesmente levadas lá por uma força maior. Assim como o capitalista que busca cada vez mais dinheiro para ganhar mais dinheiro também não tem consciência de que faz isso movido pelo "espírito do capitalismo". Da mesma forma, o pobre que se sente como não-humano, sem dignidade, porque não é capaz de consumir o que a sociedade lhe exige para que lhe reconheça a sua dignidade.
Essa força espiritual - que Weber chamou corretamente de "espírito do capitalismo - que move hoje as pessoas e a sociedade para essa obsessão pelo consumo e por ganhar dinheiro sem fim é o que o Novo Testamento chama de poderes de destruição ou que Paulo chama de principados e potestades do mal.
As pessoas são compelidas a viver a espiritualidade do consumo ou do mercado porque estão imersas no espírito do capitalismo. Mesmo que carregam externamente símbolos espirituais cristãos ou de outras religiões mais tradicionais, muitos estão mergulhados e movidos pelo espírito do capitalismo.
Neste mundo, a conversão cristã, no nível pessoal, significa abrir os olhos para enxergar as mentiras dessa espiritualidade idolátrica (cf Jo 8,44) e perceber que os "shows da fé", por mais grandiosos que sejam, não expressam a fé de Jesus Cristo, assim como a dignidade humana não vem da riqueza ou das marcas caras e famosas. Significa também desejar encarnar o amor de Deus neste mundo, assumindo Jesus como nosso modelo de vida e de ser humano.
Só que sabemos que a conversão pessoal é necessária, mas não suficiente. Precisamos também que o "mundo" se converta"! E como isso é possível?

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Onde foram parar os ideais?

Sempre foi característica dos jovens o entusiasmo e a vontade de mudança. Em vários momentos históricos, a juventude esteve à frente da construção de um mundo mais humano e feliz. Mas, com todo o esvaziamento de ideais que se deu no século XX, o que restou para muitos foram a alienação e o consumismo. Por incrível que pareça, o sentido da humanidade passou a ser o dinheiro e o consumo! Para preencher o vazio existencial, consome-se em excesso. Graças à tecnologia, uma quantidade imensa de bens materiais está a nossa disposição. Entretanto, comprar e consumir não satisfaz a busca do ser humano por um sentido.
As pessoas ganham dinheiro e consomem (pelo menos as que não são excluídas desse mecanismo injusto), mas nunca houve tanta solidão, insatisfação e infelicidade. É claro que há um consumo necessário á vida, mas a sociedade atual criou muitas necessidades que, no fundo, são dispensáveis.

Os ideais que fazem sentido

Sobre o sentido da vida, o físico Albert Einstein escreveu: Tem um sentido a minha vida? A vida de um homem tem sentido? Posso responder a tais perguntas se tenho espírito religioso. Mas, “fazer tais perguntas tem sentido?” Respondo: “Aquele que considera sua vida e a dos outros sem sentido é fundamentalmente infeliz, pois não tem motivo algum para viver” (Albert Einstein. Como vejo o mundo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1981).
Do ponto de vista das religiões, o ser humano se esqueceu de que a felicidade está num mundo mais fraterno e não apenas no consumo obsessivo de bens materiais. Na verdade a vida nada mais é do que o amor a Deus ou a um ser superior, o cultivo de si mesmo e a bondade para com todas as criaturas. Somente quando nos harmonizarmos espiritualmente, a felicidade habitará nosso coração. Quando isso acontecer, conseguiremos construir o sonhado mundo de justiça, solidariedade e amor. Também para Sócrates o sentido da vida está na busca da divindade, no autoconhecimento e na bondade.
Para a maioria das religiões, o sentido da vida não está em ter determinadas coisas, mas em ser melhor e mais humano. Quais são os nossos ideais? O que buscamos construir na vida? O que fazemos por nossos semelhantes? Como buscamos Deus? Como assumimos nossa responsabilidade diante do mundo? O que somos na verdade?Recuperar os ideais do amor. De cuidado para a humanidade e a natureza, de paz e justiça, de fraternidade e liberdade é tarefa que cabe a todos Minimizar a dores do próximo e as misérias humanas, lutar por um mundo mais feliz. Assumir nossas responsabilidades para com Deus e a humanidade são os verdadeiros antídotos para os males humanos e a sensação de vazio que toma conta dos que perderam o sentido da vida. Referência Bibliografica: (INCONTRI, Dora; BIGUETO, Alessandro C. Todos os jeitos de crer: ensino inter-religioso. São Paulo: Ática, 2005.)
Atividades:
1- Responda as seguintes questões:
a) Baseando-se nas afirmações presentes neste texto, bem como nas informações contidas no texto "Qual é o sentido da vida? (lido em sala de aula)", pergunta-se: como podemos explicar o aumento do indice de depressão e angústia em meio a tantos benefícios provenientes desse forte desenvolvimento científico e tecnológico ocorrido nos últimos anos?
b) Na sua opinião, a forma como os jovens estão buscando sentido para suas está contribuindo para o aumento da violência? Justifique.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

É possível uma sociedade justa?

Diego Bechi (diego_bechi@yahoo.com.br)
Professor de filosofia


Por meio desse texto, será possível refletir e opinar sobre problemas que envolvem o conceito “justiça”, trazendo a tona questões como: o que é justiça? Será que a consciência do justo é inata ou é apreendida por meio de convenções? A busca pela justiça é sempre justa? Ao seguir as leis, estamos necessariamente sendo justos? O que temos que levar em conta para julgar se algo é justo ou injusto? Quem é capaz de fazer esse julgamento? Ao analisar essas questões estaremos, ao mesmo tempo, adentrando na problemática relacionada à possibilidade ou não de existir uma sociedade justa.
Baseando-se em alguns dos significados presentes no dicionário digital “Aulete”, justiça significa “Situação em que cada um recebe o que lhe cabe, como resultado de seus atos ou de acordo com os princípios e a lei da sociedade em que vive”. Ao analisar essa interpretação, nos deparamos com alguns problemas que merecem ser apresentados. Logo no início, quando o mesmo salienta que justiça parte de uma situação em que cada um recebe o que lhes cabe, leva-nos a refletir sobre as seguintes questões: que critérios a pessoa que julgar tal ato deverá levar em conta? Existiria uma pessoa capaz de exercer tal função sem que suas decisões venham se tornar injustas? Seguindo o raciocínio, levando em conta agora toda resolução apresentada, pode-se dizer que ao seguir as leis impostas pela constituição, está-se fazendo um julgamento justo? Deve-se levar em conta apenas os resultados dos seus atos ou a sua intenção ou até mesmo os por quês que motivaram o sujeito a praticar determinada atitude? De que princípios o julgamento deve partir?
Segundo Abrão Iuskow, “justiça é aquilo que está conforme o direito” (1998, p. 191). Contudo, ao se referir a palavra direito Iuskow nos apresenta dois viés para entender a palavra direito: Direito Natural e Direito Positivo. Esse último está submetido ao respeito às leis escritas. Já o Direito Natural está relacionado à própria noção de justiça. Ela surge, nesse caso, como uma disposição inata nos seres humanos. Isto é, “existe em virtude da própria natureza humana, uma ordem ou disposição que a razão humana pode descobrir, e segundo a qual a vontade humana deve atuar para se acordar com os fins necessários dos seres humanos” (IUSKOW, 1998, p. 191).
Com essa afirmação Iuskow busca nos informar que somos dotados naturalmente, com ajuda da razão, da capacidade de distinguir uma situação injusta. Para ele, da mesma forma que conseguimos perceber o sabor dos alimentos, há sensores naturais que possibilitam ao ser humano perceber quando determinadas atitudes tornam-se injustas. Nesse caso, podemos utilizar como exemplos atitudes como “furar a fila”. Não é necessário alguém nos ensinar que para uma fila se manter numa ordem justa é preciso que o último a chegar permaneça em seu devido lugar, evitando passar na frente de quem chegou antes. No momento que essa ordem for quebrada, o senso de justiça é despertado, mesmo que o sujeito prejudicado não tenha sido anteriormente instruído.
Tendo em vista isso, pode-se dizer que o direito positivo (lei escrita) possui seu conteúdo calcado sobre o senso racional de justiça. Isto é, as leis que existem estão intimamente relacionadas à noção natural que podemos ter sobre a justiça. Isso acontece pelo fato de as leis escritas não conseguirem, por si sós, garantir que uma decisão seja necessariamente justa. O direito positivo surge como um meio de tornar visível e prática a busca pela justiça. Porém, esse não deve ser o único meio a ser utilizado ao buscar resolver um problema em que esse conceito está em jogo. Para Iuskow, “(...) uma coisa não é justa porque é lei, mas sim que deve ser lei porque é justa (1998 p. 192). A prática da justiça requer algo mais que o simples seguimento das leis, ela requer, do ser humano, sensibilidade em analisar os fatos, levando em conta o contexto e os motivos pelos quais resultou um determinado acontecimento.
Olinto Pegoraro chega a salientar, baseando-se na filosofia clássica, que a justiça caracteriza-se como sendo a virtude da coletividade. Levando em conta essa afirmação, o ser humano somente pode ser considerado virtuoso porque exerce uma função política e social. Ou seja, “ninguém é virtuoso para si, mas em relação aos outros” (1995, 103). Mesmo que os seres humanos sejam dotados de um núcleo subjetivo e único, como é o caso da consciência e a liberdade que cada um possui, o sujeito deverá guiar suas ações tendo em vista o coletivo. È necessário que as escolhas subjetivas estejam de acordo com o bem social, abrindo espaço para a prática da justiça e consequentemente o surgimento dos princípios éticos. Isso porque, conforme salienta Pegoraro “(...) para a filosofia contemporânea e clássica a ética consiste na convivência social e justa de seres humanos, formados para o respeito dos semelhantes e das coisas que lhes pertencem” (1995, p. 103).
Tendo em vista isso, pode-se levantar a seguinte questão: de que forma o seguimento rigoroso das leis poderá promover a justiça se essa levar em conta apenas as ações subjetivas sem precaver-se das necessidades sociais pelas quais resultaram determinadas ações? Assim sendo, tanto os sujeitos particulares quanto as próprias leis devem levar em conta o social. Segundo Pegoraro, “(...) na convivência social justa o homem chega à perfeição de si mesmo” (1995, p. 103). Porém, devido os diversos problemas presentes diariamente em nossa sociedade, somente levando em conta o social é que as leis poderão caminhar em direção à sua perfeição.
Outro significado encontrado no dicionário “Aulete digital” parte de um ordenamento social onde a igualdade é o princípio da justiça. Nele está descrito que a justiça se refere ao “funcionamento harmonioso de uma sociedade, com direitos e deveres iguais para todos os cidadãos”. Nesse sentido, Pegoraro afirma que a justiça “é o princípio da ordem pública” (1995, p. 104). Contudo, ele busca desdobrá-la em duas vertentes: a vida segundo a justiça e a vida social justa. No primeiro caso, a justiça está embasada nos princípios subjetivos de cada indivíduo envolvido. Porém, essas decisões provenientes dos sujeitos particulares devem ser aceitas por todos os atores sociais. Tendo em vista isso, os sujeitos devem respeitar, conhecer e proteger os direitos decorrentes do nascimento humano. Valoriza-se, nesse caso, o direito igual à vida, à educação da vida, à vida saudável, a participação na vida política, a distribuição dos bens materiais e culturais que alimentam a vida. Para Olinto, “estes direitos não se conquistam; são dados pelo nascimento” (1995, p. 105).
Se nessa primeira vertente Pegoraro destaca o papel do subjetivo ao buscar executar ações justas, na segunda ele passa a por em jogo o coletivo. Esse segundo princípio é formulado da seguinte forma: “devemos criar uma ordem social onde a cidadania seja plena e universal” (1995, p. 106). Nesse sentido, a cidadania não é dada apenas pelo nascimento, mas é resultado da participação efetiva do ser humano na vida política e social a ponto de lutar para a construção de estruturas sociais justas. Enquanto nossas estruturas sócio-políticas continuarem excluindo milhões de pessoas dos benefícios humanos básicos, como é o caso da miséria, fome, analfabetismo, sem-teto entre outros problemas, não haverá uma ordem social onde a justiça prepondere.
Tendo em vista toda essa preocupação com o social ao buscar extinguir as desigualdades, pergunta-se: é possível uma sociedade justa em meio a tantas desigualdades? Podem as desigualdades deixar de ser injustas? Parece-nos, até então, que acabar com a desigualdade é a receita para uma sociedade justa. O problema é que, conforme salienta Pegoraro, “as desigualdades são uma realidade irrecusável” (1995, p. 107). Se partirmos somente pelo viés de que para haver justiça é preciso combater as desigualdades, jamais haverá uma ordem social justa. Em toda história existiram desigualdades e por estarmos inseridos em famílias, culturas e condições sociais desiguais ela é inevitável. O que poderá haver é uma forma de administrar as desigualdades por meio da justiça social. Isso porque, “a justiça social não admite que as desigualdades sejam injustas” (PEGORARO, 1995, p. 107).
Assim sendo, não é preciso que haja uma igualitação das condições sociais para que a sociedade se desenvolva de forma justa. Isso porque, se assim for, a justiça será reprimida. È preciso, mesmo em meio a desigualdades, que os sujeitos disponham de liberdade para desenvolver suas potencialidades. Se não há condições sociais iguais é preciso que a justiça social administre as desigualdades de forma que os talentos das pessoas não sejam reprimidos. A injustiça está presente na vida social quando não há estruturas que garantam a todos os cidadãos oportunidades de evoluir em suas condições históricas. Para Pegoraro, “a injustiça social consiste: a) em negar a alguém a oportunidade de progredir em sua vida; b) em criar estruturas de exclusão; c) em evitar a criação de estruturas de promoção das pessoas” (1995, p. 107).
Ao garantir aos sujeitos a liberdade e os meios necessários para que possam desenvolver seus talentos, está-se, ao mesmo tempo, incentivando a desigualdade entre os sujeitos envolvidos. Isso decorre do fato de que há pessoas que possuem mais talentos e capacidades de progredir que outros. Por isso, pergunta-se: seria justo reprimir os talentos para poder então dispor de uma sociedade com um nível menor de desigualdade? Segundo a idéia aqui defendida, a resposta seria negativa. Nossa condição histórica e cultural não permite que as desigualdades sejam extintas. Pode-se até pensar que, pelo fato de haver pessoas com mais habilidades que outras, as injustiças e desigualdades aumentariam. Contudo, a idéia defendida não parte do princípio que a desigualdade seja excluída do sistema social, mas está-se referindo ao deixar todas as pessoas no mesmo patamar de condições. “(...) não é preciso nivelar todos os cidadãos no mesmo patamar; é preciso sim, que as condições de realização se estendam a todos incondicionalmente” (PEGORARO, 1995, p. 108).
Portanto, somente por meio da educação será possível romper com séculos de injustiças pelas quais atingiram milhões de pessoas. Há várias gerações pessoas vêem sofrendo por não possuírem as condições mínimas e necessárias para obter uma vida digna de ser vivida. Sem emprego, educação e saúde torna-se impossível que tais pessoas venham a atingir suas potencialidades. Nesse caso, a sociedade não lhes oferece as condições sociais para crescer conforme seus talentos. Com isso, Pegoraro salienta que a educação é o principal fator para que a sociedade venha dispor de uma ordem social justa. Todo esse problema só será resolvido “pela educação à cidadania que leva as pessoas e comunidade à participação política. Essa conscientização garante também o acesso a uma justa repartição dos bens materiais” (1995, p. 108).
Diego Bechi

Referências Bibliográficas


PEGORARO, Olinto A. Ética e justiça. Petrópolis: Vozes, 1995.


IUSKOW, Abrão. Cidadão de alto nível. Florianópolis: Sophos, 1998.

sábado, 2 de maio de 2009

Como mentir dizendo apenas verdades



Gerson Luís Trombetta (gersont@upf.br)
Professor do curso de Filosofia e do PPG em História da UPF


De todas as fronteiras que separam um conceito de outro, sem dúvida a que se encontra entre a verdade e a mentira é uma das mais tênues e quase indefiníveis. São tantas as questões e sutilezas que aparecem quando queremos precisar tais conceitos que, não muito raro, simplesmente “entregamos os pontos” e dizemos coisas como “Ah, a verdade não existe” ou “Tudo é relativo e depende do ponto de vista”. Uma coisa, porém, é certa: precisamos admitir que algo verdadeiro existe. Se fosse verdade que “a verdade não existe”, então teríamos que concordar que a verdade existe, afinal acabamos de sustentar uma frase verdadeira. Estranho, não é? Quanto mais se procura negar a existência da verdade mais ela reaparece fortalecida pela porta dos fundos. Bom, se a verdade existe, resta saber o que ela é, ou, em outras palavras, resta saber o que faz algo (uma afirmação, uma teoria, uma história, etc.) ser verdadeiro. Aí os problemas ficam mais e mais complexos. As afirmações que fazemos, as teorias que propomos, as histórias que contamos, as explicações que construímos, guardam fortemente a marca de nossos interesses e inclinações. Quando narramos um acontecimento, por exemplo, preenchemos lacunas, acentuamos ou esquecemos detalhes, apontamos para ligações com outros fatos e assim por diante. Não há como desenharmos o acontecimento desconectando-o de nossos exageros e deficiências. O que fazemos, então, são composições. Organizamos narrativas de tal forma que façam sentido, que possam ser compreendidas pelos outros e, se estivermos dispostos a um pouco de honestidade, que possam também ser questionadas ou desmentidas. Pelo fato de serem composições, tais narrativas não se baseiam integralmente em dados objetivos e concretos. Existem esses dados, existem indícios concretos, mas é a composição que fascina, é o modo como a composição é feita e a direção para onde ela aponta que produz os efeitos mais fortes. Às vezes é até possível produzir uma composição falsa com dados inquestionavelmente verdadeiros. Para ilustrar essa estranha possibilidade proponho uma rápida visita à peça Otelo, de Willian Shakespeare. Iago, o personagem central da tragédia, é um dos mais infames vilões da história da literatura. Inteligente, simpático e egoísta, ele conhece profundamente a natureza humana, principalmente os seus recantos mais obscuros. Movido pela decepção de não ser nomeado tenente por Otelo, arquiteta um plano de vingança cuja essência é enlouquecer o mouro (Otelo) de ciúmes do rival Cássio. O vilão, valendo-se da confiança que Otelo deposita nele, vai construindo uma narrativa que explicita uma suposta ligação amorosa entre Desdêmona – mulher de Otelo – e Cássio. O desfecho da história é trágico, com Otelo matando Desdêmona e suicidando-se depois de saber que não havia adultério. O que gostaria de destacar dessa intrigante peça é o método como Iago procede para conduzir a trama e realizar o seu plano. Iago usa dois ingredientes básicos: indícios materiais, inquestionavelmente verdadeiros (as demonstrações públicas de amizade entre Desdêmona e Cássio, um lenço deixado no alojamento do oficial, etc.), e o ciúme de Otelo. O sentimento de Otelo alimenta-se da incerteza e da dúvida. Como não sabe se há realmente um caso de traição, o mouro vê seu ciúme crescer até explodir em violência. A composição trágica é, assim, formada por pequenas verdades (indícios materiais) que, nas mãos hábeis de Iago, são insistentemente repetidas e amalgamadas com o ciúme extremo de Otelo. Com pequenas verdades, astúcia e conhecimento da alma humana, Iago produz uma grande mentira e, finalmente, realiza a vingança. (Qualquer semelhança entre a saga de Iago e o que vemos na mídia, nos debates políticos, nos julgamentos e até nas práticas cotidianas, pode não ser mera coincidência).